quarta-feira, 12 de junho de 2013

Patrimônio x dignidade humana: qual violência é maior?

metrolotado


Não consigo deixar de ficar chocado com os comentários e manchetes contra o ato de aumento da passagem. “Arruaceiros”, “criminosos” e “vândalos” são adjetivos corriqueiros nos jornais de hoje.
Avesso a qualquer coisa que classifiquem como “desordem”, boa parte dessas pessoas caem no canto das elites, que vociferam contra os “arruaceiros”. Muito disso se dá porque não podem questionar a legitimidade da manifestação, dado que é senso comum que o aumento da passagem é um absurdo em si.
Com um serviço ruim, ônibus e metrô superlotados, linhas insuficientes, falta de respeito a horários e um tratamento digno de gado confinado, o sistema de transporte da capital paulista é reflexo do histórico desdém do poder público e daqueles que o comandam (não os políticos, e sim os verdadeiros “donos do poder”) em relação ao espaço público.
Esse desdém é visível em todas as classes sociais, inclusive dos que protestam. Afinal, destruir o patrimônio que você briga para ser de todos é um pouco incoerente. E via de regra, é este o argumento de todos os que estão contra as manifestações. É um raciocínio simplista, que pode inclusive colocar no mesmo saco até setores da esquerda, dado que ontem um grupo de manifestantes – ao que parece integrante do ato – depredou a sede do PT.
Mas novamente, nem essa linha de raciocínio sobrevive a uma análise mais séria. Violência por violência, não dá para comparar a violência social que boa parte do povo sofre com a depredação causada por uma ínfima parte dos manifestantes. Vamos aos fatos:
1. A briga do MPL (e de todos os que os seguem) não é por uma tarifa mais barata. Ela é muito mais profunda. Ao propor a redução do valor do transporte público, o que se discute é um direito fundamental, chamado de “direito à cidade”. Composto de direitos não menos fundamentais, como o de “ir e vir”, o direito à cidade consiste (entre muitos outros direitos) em garantir ao cidadão acesso a todos os aparelhos públicos e espaços privados, como praças, clubes, parques, shoppings e serviços em geral.
2. Por isso, quem reclama da violência patrimonial, tem que ter em mente que antes dela, dezenas de violências são causadas diariamente aos manifestantes;
3. A primeira é a violência contra a dignidade humana. Carros e trens superlotados, ausência de linhas noturnas em número considerável, atrasos como regra são apenas alguns exemplos do cotidiano de quem usa transporte em SP. Atualmente são 17 milhões de pessoas viajando na cidade, todos os dias.
4. Dentro desta primeira violência está uma que merece destaque: o valor da tarifa. Como já disse antes, se você ganha um salário mínimo, você parte de um gasto de pelo menos 20% do seu orçamento (isso se só usar duas passagens de ônibus/dia). No Brasil isso significa 24,7% da população, que daria pouco mais de 47 milhões de pessoas. Transpondo esse índice para São Paulo, teríamos mais ou menos uns 3 milhões de paulistanos nestas condições.
5. Separei a violência econômica das demais porque ela evidencia, junto com o acesso à cidade, como nosso sistema estatal é precário. Se o Estado funcionasse como deveria, todo o custo de vida do cidadão seria menor. Por isso, o passe livre ainda joga luz sobre o custo de vida nas grandes cidades do país. Mais do que aumentar o salário mínimo, governos e empresas precisam viabilizar o decréscimo do custo de vida. Ainda, apesar do grande avanço desses 10 anos de PT, o salário médio brasileiro segue muito comprimido. Ao discutir o valor da tarifa, somos obrigados a lembrar de que a concentração de renda neste país segue em níveis africanos.
6. Outra violência que essa manifestação nos ajuda a ver é a policial. Ontem, vários jornalistas foram presos e agredidos pela polícia. Ao menos um deles segue detido, sob a alegação de dano qualificado e formação de quadrilha. Ele estava cobrindo o evento e foi preso. Em todos os atos são muitos os relatos de violência por parte da polícia. Exatamente como acontece todos os dias nas periferias.
7. Não obstante, temos ainda a violência da falta de planejamento urbano, de uma cidade que foi entregue à especulação imobiliária. Boa parte da superlotação do transporte público está ligada à distância entre os cidadãos e seus empregos. Com 172 mil famílias sem moradia, a cidade de São Paulo tem só no centro da cidade mais de 22 mil imóveis vagos. Mas isso não é tudo. A cidade é o avesso do ideal do planejamento urbano: empregos estão no centro, as pessoas, na periferia. Levar o emprego para os bairros periféricos além de lógico, ajudaria a diminuir o caos viário e certamente diminuiria problemas de saúde, como o stress.
8. Mas o pior é saber que todas estas violências são filhas de uma única mãe. Passeatas como a do passe livre nos obrigam a ver que o povo brasileiro foi tão violentado que se esqueceu (ou sequer aprendeu) do valor do ato público. O acúmulo histórico de tantas violências causou ao brasileiro um sentimento de revolta contra quem se manifesta. Não por não concordar com a pauta, mas pelo fato da manifestação em si. É uma espécie de síndrome de Estocolmo, onde alguns premiam o algoz, ao invés de prestar atenção no crime.
9. É lógico que dentro deste sentimento anti-manifestação existem os conservadores. Aqueles que são contra por motivos visceralmente ideológicos. O curioso é o nível de incoerência que estas pessoas vivem. Opõem-se à violência patrimonial, mas não dão a mesma importância à violência social que muitos sofrem, todos os dias. Não consigo deixar de achar que há um alto grau de seletividade. O que classificam como “ordem” é a desordem cotidiana da maioria.
10. Por isso, esse texto é para a maioria das pessoas que por se sentirem impotentes, não se manifestam. É uma pequena contribuição para aqueles que acham “feio” qualquer manifestação coletiva. A eles é sempre bom lembrar da velha frase de Rosa Luxemburgo: “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”. Ou como diria Marilena Chauí, democracia é disputa. Paz, só no cemitério.

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