quinta-feira, 6 de junho de 2013

Estatuto do nascituro: uma célula vale mais que uma mulher?

1-a-am-cuidado-o-machismo-mata



Este é o terceiro post que escrevo esta semana. Os outros dois não consegui terminar por não ter gostado do rumo que tomaram… Estava buscando algo mais “do momento” e que estivesse merecendo a devida atenção.
Infelizmente, não demorei muito para achar.
O tema foi divulgado à exaustão nas redes sociais, mas acho que ainda cabem algumas considerações sobre esta aberração jurídica, apelidada de Estatuto do Nascituro. O nome bonitinho esconde seu deprimente conteúdo e, na verdade, poderia se chamar “Estatuto da Mulher-Objeto”.
Evito comentar publicamente sobre assuntos que envolvam o machismo pelo fato de ser homem. Não que eu não ache que não devemos participar do debate. Apesar de defender a existência de espaços unicamente femininos para a discussão de gênero, espaços mistos já se provaram úteis para enquadrar o machismo que passa despercebido para a maioria dos homens (eu incluído). Só acho que a iniciativa da discussão – sempre que possível – deve partir das mulheres.
Porém, esta bizarrice merece uma intervenção, pelo retrocesso que ele significa. Vejam só:
1. O projeto foi assinado por dois homens. Curioso não? Eles já ficaram grávidos?
2. Na justificação, os homens se valem de leis aprovadas por dois outros países, os EUA e a Itália. Ótimos exemplos de manutenção de um Estado laico, a lei americana foi aprovada pelo progressista Bush (aquele que recebeu deus no seu sonho, pedindo para atacar o Afeganistão e o Iraque). Já no outro caso, a lei foi aprovada no país do Vaticano. Aliás, é sempre bom lembrar que 1/3 das propriedades da Itália são da Igreja católica. Mais um bom exemplo de separação entre religião e Estado.
3. Mais do que criminalizar o aborto, o projeto dos colendos deputadOs obriga a vítima de estupro a manter a gravidez. O substituto apresentado pela deputadA Solange Almeida lembra do detalhe que o Código Penal permite o aborto em caso de risco de vida da gestante ou estupro. Porém, não é o que está no projeto aprovado na Comissão.
4. O texto simplesmente obriga a gestante de feto anencéfalo a manter a gravidez. Vê só:
Art. 10º O nascituro deficiente terá à sua disposição todos os meios terapêuticos e profiláticos existentes para prevenir, reparar ou minimizar sua deficiências, haja ou não expectativa de sobrevida extra-uterina.
O substitutivo da deputadA também melhora um pouco a situação. Ela retirou o conteúdo da falta de expectativa extra-uterina, eis o conteúdo:
Art. 10. O nascituro terá à sua disposição os meios terapêuticos e profiláticos disponíveis e proporcionais para prevenir, curar ou minimizar deficiências ou patologia.
Mas não se enganem. O conteúdo deixa brechas para que um juiz entenda eventualmente que os meios “proporcionais” sejam a manutenção do feto anencéfalo até o nascimento.
5. Existem diversas questões jurídicas a serem enfrentadas. A primeira que me vem à cabeça é dar ao não-nascido direitos que implicam na diminuição dos direitos de quem já nasceu. Na verdade, diminui os direitos das mulheres. Outras: a necessidade de contato do pai e a possibilidade de uma bolsa estupro. E a autodeterminação das mulheres? Vai pra onde?
6. O projeto é uma aberração por buscar um entendimento religioso sobre o conceito de vida. Ao entender que o não-nascido tem direitos sobre os direitos da mãe, já nascida, o PL diz que a vida começa na fecundação. Conceito sustentado por pessoas que primam pelo racionalismo, como o Papa.
7. Mas de fato, o ponto central do projeto não é o ataque ao Estado laico. O que permite que loucuras como essas prosperem é mais do que o fanatismo religioso. É o bom e velho machismo. Machismo reproduzido em massa por mulheres, mas pensado e executado por homens. É só ver quem são os responsáveis pelo projeto.
8. Ele foi proposto por pessoas que só pertencem às estatísticas abaixo como agentes, nunca como vítimas. (fonte:http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/images/stories/PDF/pesquisas/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf)
8.1. Em 2011, 13 mil mulheres sofreram algum tipo de violência sexual. A maioria em suas residências. Ainda, é sempre bom lembrar que estatísticas como essa, pela natureza do crime possuem altos índices de cifra negra (porcentagem desconhecida oficialmente) já que muitas mulheres não denunciam os fatos, por medo ou vergonha;
8.2. O Brasil coupava em 2009 o 7º lugar em nº de homicídios femininos no mundo, de uma lista de 84 países.
9. Por isso, é inadmissível pensar que uma presidenta sancione um projeto de lei como esse. Sei que antes de brigarmos com o Executivo, temos que pressionar o Legislativo. Assim, é fundamental pressionarmos nossos deputados e principalmente nossas deputadas. Caso este projeto seja aprovado, teremos uma legislação que dá mais direitos a um ser não-nascido do que uma mulher sã, viva e com direitos. Dar mais direitos a um zigoto do que uma mulher é de longe o maior retrocesso em termos de direitos que vi recentemente. Algo que juridicamente não existe pode ser mais importante do que uma pessoa viva e nascida?
Sonho com o dia em que projetos de lei relativos à saúde da mulher só possam ser propostos por mulheres, ainda mais se tratarem de assuntos como gravidez. Mais do que isso, sonho com o dia em que essa discussão seja absolutamente desnecessária porque já teremos entendido que o moralmente aceitável é reprimir as causas do machismo e não suas consequências. Para isso acontecer, o único jeito é – como sempre – ir pra rua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário